Escrevi esse prefácio há três anos, para o livro "Chaves, o segredo do sucesso", dos ex-alunos e grandes amigos Wolfgang Pistori e Jacqueline de Brino. Fica como homenagem ao Grande Bolaños.
Uma de minhas maiores diversões na infância era ver Chaves. Exceto nos dias seguintes às vitórias do Palmeiras, time para o qual aprendi a torcer influenciado pela família do meu pai, de raízes italianas. Quando o “Palestra” jogava aos domingos, eu chegava da escola às segundas--feiras, jogava o material sobre a mesa e corria para ver todos os programas esportivos possíveis. Na época, não existia televisão de controle remoto. Por isso, ficava em pé na beira da velha “Telefunken”, um televisor gigantesco, apertando um a um os largos e barulhentos botões. Mudava de canal a todo tempo, para saber tudo o que estavam falando do meu querido Verdão.
Enquanto via o futebol, monopolizando o único aparelho de TV que tínhamos em casa, meu irmão resmungava pra minha mãe que queria assistir ao Chaves. Por vezes, eu acabava cedendo. Sem arrependimentos. Foi com o personagem que aprendi a gostar de piadas simples, contadas numa vila pobre, habitada por personagens que mais pareciam caricaturas de gente que vivia ao nosso lado, como vizinhos, amigos e parentes. Aos poucos, fui deixando o futebol de lado. Assim que chegava da escola, ligava no SBT. Isso quando meu irmão já não estava me esperando, grudado na telinha.
Éramos, meu irmão e eu, dois sonhadores, a exemplo de Kiko e Chaves. Ainda crianças, com ar de pureza, sentíamos pena do personagem central, que desejava um simples sanduíche de presunto. Já Kiko queria algo inusitado, imaginário, inatingível: idealizava uma bola quadrada. O personagem bochechudo, com roupa de marinheiro, vivia numa casa com razoáveis condições financeiras, que permitiam, ao menos, comer um sanduíche quando tivesse vontade. Já o dono do barril tinha fome de fazer roncar a “barriguinha”. E não perdia as esperanças de um dia poder desfrutar de um farto desjejum. A bola quadrada, sabíamos, nunca chegaria. Era ilusão. Agora, o sanduíche sim. Estava mais ao alcance das mãos.
Deve ter sido por isso que nos identificamos mais com os sonhos do Chaves. Vivíamos em uma pequena cidade do interior e também nutríamos sonhos simples. Bolinha de gude, pipa, brincar de amarelinha, rodar pião... Esse era o nosso universo. Estávamos crescendo em meio à molecada da rua, do bairro, meninos e meninas que, em várias situações da vida, também sentiam falta de um sanduíche. A bola, todos se contentavam com a redonda mesmo, em peladas na rua, em que as traves dos gols davam lugar a chinelos de dedo.
Chaves marcou época na nossa turminha. E me fez abrir um duradouro sorriso quando os queridos alunos Wolfgang Pistori e Jacqueline de Brino, que carinhosamente chamo de Wolf e Jacq, me comunicaram que fariam um livro sobre o Chaves. Topei na hora. Ainda mais porque nossos objetivos eram comuns: entender porque o programa continua sendo assistido e comentado, mesmo
reprisado exaustivamente. Para isso, eles foram buscar a opinião de fãs, de profissionais envolvidos com o programa e de acadêmicos, que analisaram episódios por uma óptica da ciência.
Esses bravos estudantes do quarto ano do Jornalismo da Barão de Mauá enfrentaram, porém, resistência. Muitos não entendiam o motivo de se estudar Chaves, um seriado aparentemente “banal”, no temido Trabalho de Conclusão de Curso. E duvidaram. Passaram a ver a proposta como uma “bola quadrada”, intangível, longe dos olhos e das mãos, fora da realidade. Que Wolf e Jacq desistissem! Afinal, bola quadrada não existe!
O que pouca gente sabia é que Wolf e Jacq não sonhavam como Kiko. Mas como Chaves. Queriam um caprichado sanduíche de presunto, que pudesse ser apreciado, mastigado, engolido e, o melhor, matasse a nossa fome... de novos olhares, de posturas firmes e ousadas, de coragem, de persistência, audácia, perspicácia.
O sanduíche está aqui, pronto, recheado com o presunto da obstinação. Um recheio que nos faz refletir sobre nossa condição social, nossas mazelas e, ao mesmo tempo, nossos encantamentos com o mundo, como naquelas vezes em que decidi dar voz ao meu irmão e acreditar que Chaves era capaz de fornecer um recado para a vida.
Igor Savenhago
Jornalista e professor universitário
Pontal, Sertãozinho e Franca/SP
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